Crítica: O Beijo no Asfalto (2017, de Murilo Benício)


Esse é o primeiro filme dirigido por Murilo Benício e ele já traz ao cinema uma obra teatral do grande Nelson Rodrigues. Um texto com 60 anos de existência, mas que ainda se mostra extremamente atual quando falamos sobre questões humanas e até mesmo sobre nosso momento político. Benício se mostrou um diretor incrivelmente competente e criativo. É bom ficarmos de olhos bem abertos nesse moço nos próximos anos!

Não estamos falando aqui de um simples filme, mas de uma fusão entre o teatro e o cinema unidos em um documentário fantástico que dá corpo, muito conteúdo e beleza à obra. Benício traz uma linguagem rica e muito específica à essa adaptação. Ele nos dá a oportunidade de acompanhar a leitura dramática da peça, onde os atores ensaiam e discutem suas falas e motivações, e acompanhamos texto a texto a maneira com que cada um cria seu próprio personagem. Esse é um filme para quem gosta de arte, para quem tem a curiosidade de conhecer a construção da estrutura de uma peça teatral ou de uma obra cinematográfica. É genial!

O filme faz uma adaptação bem fiel da peça original e conta a história de Arandir (Lázaro Ramos), um homem recém casado e apaixonado que assiste o atropelamento de um rapaz e corre para socorrê-lo, quando nota que o pobre já estava quase morto e, nesse momento, lhe dá um beijo, que jura ter sido o último desejo de um moribundo. Selminha (Débora Falabella), a esposa de Arandir, recebe a notícia da tragédia por Aprigio (Stênio Garcia), seu pai, que se mostra preocupado em demasia, mas ela parece não se importar com o fato. Há claramente algo desconfortável na relação desse pai com sua filha, mas somente no final é que vamos compreender o que é esse desajuste entre os dois.

A história vai se desenrolando em torno do fato e dos diferentes julgamentos sobre ele. Arandir sente que esse foi um pedido de alguém no instante de sua morte e que nesse momento ele deveria ser bom. Aprigio acha que foi um absurdo e que claramente o genro possui tendências homossexuais. Selminha acredita que o marido não o beijou, porque a contaria se o fizesse, já que nunca havia escondido nada dela. Os jornais procuram por uma manchete que faça vender muito jornal e um simples beijo afetuoso não os daria isso, já a polícia, bem… esses querem um culpado, querem jogar todo o ódio e preconceito em cima de uma pessoa e fazer com que um acidente se torne um homicídio.

Interessantíssimo assistir como a dúvida vai tomando conta de todos eles. Nos lembra daquela velha premissa de que “uma mentira contada muitas vezes pode se tornar uma verdade”. Isso é tão real que até mesmo Arandir começa a questionar-se sobre suas próprias certezas e o caos se faz presente. Não é engraçado pensar que um texto escrito em 1961 já falava sobre todo esse moralismo, o conservadorismo e até mesmo sobre as tais fake news que estão diante de nós nesse instante?

É realmente muito difícil colocar em palavras a beleza dessa obra e de como ela foi desenhada por Benício. Há momentos em que, na mesa de ensaio, enquanto os textos estão sendo lidos e as peculiaridades sobre Nelson Gonçalves e cada um de seus personagens estão sendo discutidos, sua mente é a responsável por criar suas próprias cenas e idealizar os acontecimentos, mas também existem outros em que você vê a angústia nos olhos de seus personagens e vibra por cada acontecimento.

O único fato contundente aqui é o beijo, mas todo o resto fica por conta dos nossos julgamentos. Fica nas nossas mãos a conclusão dessa história e eu acho maravilhoso quando uma obra deixa nas nossas mãos o poder de apontar o possível erro, nos indignar com a provável injustiça e até mesmo nos questionar até que ponto nossos julgamentos afetam a vida de alguém.

O filme conta com um elenco espetacular onde todas as leituras e interpretações são sensacionais e feitas com muita entrega e profundidade, mas Murilo Benício teve a sacada das sacadas quando trouxe para a mesa de ensaios Fernanda Montenegro, ela que conviveu com Nelson Rodrigues e esteve por perto quando esse texto foi escrito, um pouquinho antes da ditadura tomar conta do país, e pôde nos trazer suas impressões daquele momento. Uma viagem no tempo! Daria para fazer um documentário extra com todo esse conteúdo.

Além disso tudo, existe algo que não pode ser esquecido, que é a fotografia impecável de Walter Carvalho com a escolha de um filme feito inteirinho em preto e branco, que dá ainda mais sentido a esse clima de bastidores, mas sem tirar o drama e a tensão dos fatos. Houve um casamento perfeito entre esses detalhes escolhidos a dedo e muitos planos fechados e cortes pontuais. Um filme realizado somente em 12 dias, mas com tamanho cuidado, competência e dedicação.


Título Original: O Beijo no Asfalto

Direção: Murilo Benício
Elenco: Lázaro Ramos, Débora Falabella, Otávio Muller, Stênio Garcia, Luiza Tiso, Marcelo Flores, Fernanda Montenegro, Augusto Madeira.

Sinopse:  Arandir, um homem pacato e recém casado assiste um atropelamento e corre ao encontro do acidentado, mas já o encontra quase morto e só tem tempo de realizar seu último pedido, um beijo. O ato foi visto por todas as pessoas que passavam no centro de São Paulo naquele momento, inclusive seu sogro e um repórter sensacionalista que publica em seu jornal uma história cheia de teias que vira a vida de Arandir de pernas para o ar.


Trailer:


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