Twin Peaks: O Grande Marco da TV Americana



Cada vez mais as séries de TV (aberta ou paga) e as de serviços streaming (Netflix, Amazon, Hulu e outras) estão alcançando um nível cinematográfico, com grandes orçamentos, aspectos técnicos impecáveis e o melhor: com tramas e roteiros envolventes e bem orquestrados. Hoje em dia, o novo público da era digital “consome” rapidamente e maratona diversas dessas séries – e com razão. Além das mesmas viciarem fácil, algumas estão transcendendo para um nível maior, com uma qualidade até mesmo superior ao cinema, vide o caso das fantásticas Stranger Things e Game of Thrones


Bem, tudo há um começo. Antes de você vibrar pela guerra dos tronos (Game of Thrones), torcer pela sobrevivência do apocalipse zumbi (The Walking Dead), ficar perdidinho (Lost), fazer conspirações alienígenas (Arquivo X – para quem presenciou os anos 90), houve uma série precursora, que abriu espaço para um novo formato, uma nova forma de se contar uma narrativa televisiva. É aí que chegamos a Twin Peaks, uma das melhores séries de todos os tempos. Embarque com a gente e entregue-se aos mistérios desta cidadezinha. 


Contexto:


Há dois momentos na história dos seriados: antes de Twin Peaks e depois de Twin Peaks. Por quê? Porque outrora, dos anos 80 para trás, as séries eram mais limitadas de diversas formas: o canal e/ou produtora controlavam o tom, quase sempre leve e bem família, modificando personagens e tramas somente em prol da audiência. Tinham orçamentos limitados, pouco controle criativo (se estava dando certo, não mudava), a trama era episódica (um assunto ou desafio por episódio, com pouco desenvolvimento sequencial). Resumindo: diretores e roteiristas só podiam fazer aquilo que o canal queria. 


Porém, o gênio David Lynch e o produtor Mark Frost conseguiram algo praticamente inédito: dirigir, roteirizar e controlar o rumo da trama da série, com um tom obscuro e uma história sequencial, onde precisa-se absorver cada detalhe para entender o todo. Isto fez toda diferença para se fazer algo inédito, fresco, inovador na televisão. Abriu-se assim caminho para séries mais ousadas, originais, fortes, com tramas complexas e cuidados técnicos melhorados, mais próximos do cinema. Abriu-se a porta para Arquivo X e todas outras séries de sucesso posteriormente, como algumas que citamos mais acima.




O sucesso:


Twin Peaks estreou na TV americana em 8 de abril de 1990, na ABC. A 1° temporada de 8 episódios foi um estouro instantâneo, deixando o público americano intrigado e vidrado na telinha. Considerada pela crítica como revolucionária, agradou no restante do mundo, ganhou alguns prêmios e foi um dos maiores sucessos da TV mundial na década de 90. Aqui no Brasil, a série passou de maneira modesta, em um horário tarde e com alguns episódios cortados, o que causou ainda mais confusão no público do país – se já não bastasse o conteúdo pouco usual. De toda forma, naquele momento o mundo todo perguntava: – Quem matou Laura Palmer?


Em 1991, a segunda temporada trouxe 22 episódios, onde os primeiros continuaram a todo vapor do sucesso, mas logo em seguida esfriou-se, cancelando prematuramente este clássico instantâneo. Tal fator deve-se pelo fato da série revelar seu maior mistério nessa 1° parte da 2° temporada, tirando o interesse do público. Mas isso não quer dizer que depois disso seja ruim, na verdade está bem longe disso!




A trama:


Em uma pequena cidade, a jovem Laura Palmer (Sheryl Lee) é encontrada morta. O excêntrico agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) chega para resolver o caso e logo acaba descobrindo os segredos dos estranhos e também excêntricos moradores da cidade. Além disso, Dale tem bizarros pesadelos, cheios de surrealismos e enigmas, que acabam interferindo de alguma foma nas investigações e na vida de diversos moradores. 


Bem, a partir daí é necessário desligar o senso de realidade e embarcar em uma viagem psicológica inacreditável.


Crítica da série:


Twin Peaks possui algo bem específico e importante em séries de mistério, algo que faz com que você entre naquele novo mundo: atmosfera. O estilo de filmagem, a linguística do roteiro, toda construção da época, tudo dá certo, define o tom e faz você adentrar na trama. A construção da pequena cidade, alguns conceitos conservadores, as características típicas de um mundo recém saído dos turbulentos anos 80 e entrando nos novos anos 90 (sem existência de celular, internet e computadores pré-históricos apenas em empresas e delegacias), tudo remete a uma outra época, outro mundo, e isso é fundamental para criar uma realidade palpável. 


O roteiro é sublime ao abordar questões extremamente pesadas e/ou polêmicas, mas sem ser chocante demais, expositivo ou desnecessário. Ao longo de duas temporadas nós temos assassinatos, traição, estupro, um transexual, violência contra mulher, abuso de drogas, etc. Adicionados em um texto que insere elementos filosóficos, questões psicológicas e que beira uma apoteose espiritual. 




O time de diretores encabeçados por David Lynch é incrível, conseguindo manter um clima crescente de mistério, em uma trama que sempre avança, mesmo que lenta às vezes. Tal lentidão não é ruim, mas necessária para apresentar elementos, desenvolver personagens, fazer nos importar com o que ocorre. Se fosse mais acelerada, possivelmente não teríamos tantas características clássicas que marcaram a cultura pop, como a xícara de café, as árvores das florestas e madeireiras, a torta da lanchonete, o uniforme das garçonetes, a coruja, os bizarros sonhos do agente Cooper, dentre tantas outras coisas que poderiam ser banais, mas que na verdade são fundamentais para a mitologia da obra. Alguns episódios são extremamente bem dirigidos, com ângulos de câmera fantásticos, lentos, voyeurísticos e que primam em mostrar uma direção de arte incrível (como pisos e papeis de parede), ou focar nas boas atuações de um talentoso elenco. 




Elenco esse que está impecável. Em um leque gigante de personagens (entre moradores e breves visitantes), 95% destes entregam um esforço cênico de fazer inveja em muito filme oscarizado. Kyle MacLachlan está perfeito como o protagonista, mesclando sua curiosidade investigativa e sagacidade de humor negro, com alguns momentos de ingenuidade. Ray Wise e Frank Silva entregam atuações assustadoras. Temos ainda performances maduras de Dana Ashbrook, Michael Ontkean e o já falecido Miguel Ferrer. Temos todo um time feminino fantástico, seja pela surreal beleza das atrizes, como também atuações. Destacam-se Sherilyn Fenn, Madchen Amick, Lara Flynn Boyle e Sheryl Lee. Esta última é Laura Palmer, a moça assassinada – que aparece pouco na série em flashbacks, mas brilha no filme explicativo de sua morte. Além destes, o próprio David Lynch brilha como um oficial do FBI levemente surdo, que grita é é brilhantemente hilário.


A trilha sonora de Angelo Badalamenti é marcante, inesquecível, um ícone dos anos 90. Triste e bela, remete a sentimentos reconfortantes e melancólicos em um mesmo grau. Toda composição sonora casa bem com a série, ajudando a emocionar ou arrepiar em momentos chave da obra. Toda parte visual é de primeira, com belos figurinos, penteados, maquiagens, direção de arte, papeis de parede, criação de designe de interiores, etc. Em um tempo sem computação gráfica (CGI), tudo foi criado de verdade para dar verossimilhança. A fotografia se une a cinematografia, nos transportando de verdade para aquela cidade, admirando as paisagens e tentando resolver o mistérios. Tudo, simplesmente tudo em Twin Peaks funciona.


Retornou em 21 de Maio de 2017. E este ano ainda surge como algo simbólico, uma vez que na própria mitologia da mesma, foi predito que haveria um retorno 25 anos depois. Isso é no mínimo de arrepiar. A nova temporada passará nos Estados Unidos pelo canal Showtime aos domingos. No Brasil, será lançada nas segundas, na maravilhosa Netflix. Também será exibida no Festival de Cannes, neste final de semana.


Trilha sonora completa, composta por Angelo Badalamenti:







O filme:


No Festival de Cannes de 1992, o filme prequel Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer chegou sem muitos elogios, mas o tempo fez justiça. Hoje é considerado um expoente de Lynch. Apesar de mais pesado que a série, nos leva de volta aquele universo, mostrando – em partes – o que aconteceu com Laura Palmer antes de ser morta, antes de levar aos acontecimentos iniciais da série. Em 2014, foi lançado um material extra de 90 minutos intitulado Twin Peaks – As Peças Que Faltam. Este material são cenas cortadas do filme de 1992 e acha-se em alguns sites. O mais interessante tanto no filme quanto no material extra é que nada é explicado explicitamente, de fato. Há sim alguns detalhes de coisas que já se imaginavam, mas há também inúmeras perguntas levantadas. Ao contrário da maioria das histórias de origem do cinema e da TV, Twin Peaks vai na contramão, questionando em vez de responder. 




Os simbolismos:


Não, não irei explicar ou lançar teorias sobre os diversos mistérios e simbolismos da série. Embora tenha “entendido” algumas propostas, não farei isso por dois motivos: 1° é que qualquer coisa que se fale pode ser spoilers e tirar a graça de quem não viu, e 2° é que qualquer explicação antes de se ver a obra pode tirar total a graça da mesma, uma vez que um dos objetivos de Lynch é questionar e fazer cada um interpretar da sua maneira alguns surrealismos. Apenas irei pincelar umas constatações.


É uma série de camadas, de detalhes e de metáforas, como todo currículo e carreira de David Lynch. Nos seus filmes e na série, o que importa é a jornada e suas perguntas, e não o destino e as respostas. Lynch questiona a sociedade, os podres das pessoas, os sentimentos mais profundos, os desejos, suas motivações, sua fé, os erros e segredos. É um estudo da mente, pensamentos, do psicológico. Uma vez assim, elementos de fantasia, características lúdicas e referências folclóricas e espirituais, podem ser interpretadas como reflexos psicológicos. Neste sentido, Lynch acaba sendo de certa forma, um cineasta que se porta como um psicólogo ou filósofo. Mas faz isso sem nunca perder o timing, mantendo o suspense, a diversão, um ácido humor e cenas de puro terror.




Concluindo: 


Twin Peaks é uma obra-prima da TV, a primeira grande série obrigatória, mãe e responsável por todas boas séries que você assiste hoje. Continua fácil e invicta como uma das 5 melhores de todos os tempos. Tem uma construção de um universo próprio, com ótima direção e roteiro, atuações marcantes, cenas icônicas memoráveis, uma trilha sonora emocionante. E o mais impressionante: ela apresenta o abstrato de maneira palpável, enquanto que o concreto flerta com o abstrato. 



Abaixo você confere os teasers da terceira temporada, mas nenhum trailer completo foi lançado, aumentando os mistérios e mantendo-se como algo original, já que vivemos em tempos onde há excesso de trailers: 






Título Original: Twin Peaks


Criada por: David Lynch e Mark Frost


Direção: Caleb Deschanel,  David Lynch (I), Diane Keaton, Duwayne Dunham,  Graeme Clifford,  James Foley (I),  Jonathan Sanger, Lesli Linka, Glatter Stephen Gyllenhaal,  Tim Hunter,  Tina Rathborne, Todd Holland (I),  Uli Edel.


Elenco: Dana Ashbrook, Everett McGill, Jack Nance, James Marshall (I), Joan Chen (I), Kimmy Robertson, Kyle MacLachlan, Lara Flynn Boyle, Mädchen Amick, Michael Ontkean, Peggy Lipton,  Ray Wise, Richard Beymer, Sherilyn Fenn, Warren Frost (I), Alicia Witt, Al Strobel, Annette McCarthy, Austin Jack Lynch, Bellina Logan, Betsy Lynn George, Billy Zane, Brenda E. Mathers, Brenda Strong, Carel Struycken, Catherine E. Coulson, Charlotte Stewart (I), Chris Mulkey (I), Claire Stansfield, Clarence Williams III, Clive Rosengren, Dan O’Herlihy, Dave Bean, David Duchovny, David L. Lander, David Lynch (I), David Patrick Kelly, David Warner, Don Amendolia, Don Calfa, Don S. Davis (I), Eric DaRe, Frances Bay, Frank Silva, Galyn Görg, Gary Hershberger, Gavan O’Herlihy, Geraldine Keams, Grace Zabriskie, Hank Worden, Harry Goaz, Heather Graham, Ian Abercrombie, Ian Buchanan, Jack McGee (I), James Booth, Jan D’Arcy (I), Jane Greer, Jennifer Aquino, Jill Pierce, Jimmy Scott, J. Marvin Campbell, John Apicella, John Boylan (I), Joshua Harris, Julee Cruise, Julie Hayek, Kathleen Wilhoite, Kenneth Welsh, Lenny von Dohlen, Lisa Cloud, Mak Takano, Mark Frost (I), Mary Jo Deschanel, Matt Battaglia (I), Michael Horse, Michael J. Anderson, Michael Parks, Miguel Ferrer (I), Molly Shannon, Nicholas Love, Phoebe Augustine, Piper Laurie, Ritch Brinkley, Robert Apisa, Robert Bauer (III), Robyn Lively, Ron Blair (I), Ron Taylor, Royal Dano, Royce D. Applegate, Russ Tamblyn, Sheryl Lee, Ted Raimi, Tony Burton, Tony Jay (I), Van Dyke Parks, Victoria Catlin, Wendy Robie, Willie Garson, Will Seltzer.

Sinopse: criada por David Lynch, “Twin Peaks” foi a série de suspense que se tornou um dos acontecimentos mais aclamados na história da televisão mundial. Foi um fenômeno que varreu o mundo, ao mostrar as investigações do brutal assassinato da rainha do baile de formatura, Laura Palmer (Sheryl Lee), numa pequena cidadezinha chamada Twin Peaks. Dale Cooper (Kyle MacLachlan) é o agente federal encarregado do caso, e que descobre que a pequena cidade está recheada de segredos mortais. Cooper se enfronha por este mundo, conhece cidadãos misteriosos, descobre um outro crime na floresta e é atormentado por sonhos muito bizarros. Todos queriam saber “Quem matou Laura Palmer?”. A revelação será apenas mais um choque inesperado numa cadeia de eventos surpreendentes.


Trailer feito por um fã:






Galeria de imagens:





















Ensaio do retorno do elenco para a terceira temporada:



E você, já viu esta obra-prima? Se não viu, corre pra ver e depois acompanhe a nova temporada. Gostou do especial? Comente e compartilhe nossa matéria.
Obrigado 🙂

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