UM OLHAR PARA O CINEMA ESTRANGEIRO: “4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS”

Foi entre 2007 e 2008 que a
discussão sobre o aborto praticamente estourava no mundo. O assunto sempre fora
alvo de discussão entre governos, por isso também considerado um dos tabus
de nossa sociedade, já que se tornou um dos grandes impasses entre o estado e a
Igreja. A questão é que a discussão nunca teve um fim e talvez nem nunca tenha.
Pois bem, foram nestes dois anos que o assunto também chegou ao Cinema, a
temporada de discussão cinematográfica sobre o aborto foi aberta com o festival
de Cannes 2007 que entregou a “Palma De Ouro” ao romeno “4 MESES, 3 SEMANAS E 2
DIAS”, que abordamos aqui; apenas para nosso conhecimento, o assunto ainda
renderia dois ótimos filmes, cada um numa abordagem diferente da situação. Em
meados do final de 2007 foi lançado o filme “LIGEIRAMENTE GRÁVIDOS”, que
abordou o tema da gravidez indesejada; depois o Oscar 2008 ainda premiaria “JUNO”,
cujo tema seria a desistência do aborto. Mas dos três filmes o mais representativo
e importante é “4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS” que vai a fundo na discussão e que
tem significado de peso para o próprio Cinema.

O filme é o mais importante do que
chamamos de “o novo Cinema romeno”, a retomada do Cinema no país e é também a
obra prima do diretor Cristian Mungiu, considerado um dos mais importantes diretores
da atualidade. Com seu estilo marcante, totalmente influenciado pelo “Dogma 95”,
que se tornou um movimento cinematográfico muito presente no Cinema europeu,
Cristian construiu um filme sóbrio, corajoso e altamente explícito. Ele uniu em
seu filme um assunto para representar o outro, ou seja, para deixar claro o
quanto doía a ferida impressa pela ditadura do país na vida de todos, ele
mergulhou num assunto que representou a manipulação de um ditador sobre o seu
povo. “4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS” mostra duas universitárias, Otilia que ajuda
a amiga Gabita, em concluir um aborto clandestino em 1987, dois anos antes da queda
da ditadura. O título, aliás, é a duração da gravidez de Gabita prestes a ser
encerrada. E o que isso quer dizer? Muito. O ditador Ceausescu havia proibido o
aborto no país, pois segundo ele a Romênia precisava chegar em 30 milhões de habitantes
até o ano 2000 e seu discurso era de que o feto significava uma propriedade
socialista da sociedade inteira. Aqueles que deliberadamente se recusassem a
ter filhos seriam desertores tentando escapar das leis da continuidade nacional.
Nem é preciso dizer da inexistência da liberdade de expressão e da paranoia que
impunha sobre os direitos de cada um. É por isso que, durante o filme, tudo é
feito em silêncio e segredo total, pois trata-se e um crime. As amigas contratam um médico clandestino,
imensamente sério no que faz e cheio de exigências, afinal o que ele faz é cometer um crime e dos mais hediondos. Elas, por sua vez, falham nas exigências dele, o que resulta
numa discussão dentro do quarto do hotel que alugaram para o procedimento, numa
das melhores sequências do filme. Ainda assim o crime consegue ser realizado. O
procedimento hediondo, caríssimo (a discussão sobre o valor também é
espetacular e emblemática demais) e clandestino é concretizado em menos de 10
minutos, uma vez que o filme se passa todo num único dia.
Não obstante a isso, Cristian
encontra ainda uma forma de deixar evidente a desigualdade presente na
Romênia, um dos únicos caminhos no qual este tipo de sociedade poderia se apoiar. O Brasil, que viveu também uma ditadura, não é muito diferente, com a desigualdade estampada em seu retrato social. A personagem Otilia, após a ação, deixa a amiga repousando e vai
participar do aniversário da mãe do namorado, que também é universitário. Encontra lá
doutores, amigos da família e, durante a refeição, discutem sobre os benefícios de se ter ensino superior. Após perguntarem para a jovem sobre os pais e ela responder
que os mesmos eram simples, ou seja, de que não eram formados, ela ouve a
pérola deles de que “pessoas simples as vezes são mais educadas e sensatas que
muitos universitários”. Com isso temos um panorama da tamanha falta de apoio
existente ali, num país tomado pela ditadura, onde pelas ruas encontram-se as
saídas clandestinas, muito bem construídas e onde também encontram-se quem realmente luta de verdade e luta para sobreviver, ainda que sem saber pra onde ir. Por isso a personagem
Otilia funciona como uma espécie de líder e auxilia em tudo a amiga para o
aborto, uma pessoa que destaca-se, que faz os acordos, que se embrenha pelas ruas escuras e silenciosas,
onde Cristian faz questão de nos fazer escutar os barulhos dos veículos, do
vento e dos ruídos. Sua câmera é semidocumental, está atrás dos personagens ou dentro dos
lugares minúsculos causando um incômodo em quem assiste; suas cenas são
praticamente claustrofóbicas, cruas, de cortes bruscos e de imagens explícitas.
Ele não nos poupa em mostrar o pequenino feto abortado, envolto em toalhas no
chão do banheiro do quarto e todo cheio de sangue. Aliás, feto que depois
Otilia pega e vai desovar, atravessando pelas mesmas ruas escuras, na tubulação
do lixo de qualquer edifício alto, outra exigência do tal médico. Esse tipo de
atitude foi comum na Romênia, encontrar abortos no lixo ou mesmo enterrados e
depois descobertos pelos cães.

Enfim, tudo isso faz de “4 MESES,
3 SEMANAS E 2 DIAS” um dos filmes europeus mais chocantes e impactantes; um dos
filmes mais importantes da história e, sem sombra de dúvida, o mais importante
da retomada do Cinema na Romênia, colocou o nome de Cristian Mungiu no topo dos
principais nomes do Cinema no mundo. Com enredo cru, roteiro inteligente,
atuações perfeitas e prêmios, será sempre lembrado. De lá pra cá os filmes romenos
estiveram em destaque presentes em festivais, com ótimas bilheterias nos
cinemas e colhendo premiações. A maioria deles sempre deixando claro as feridas
abertas pela ditadura, tentando assim, exorcizar um atraso de décadas do país
se comparados com outros povos. Enfim, é pra isso também que existe o Cinema, para
por pra fora um olhar de quem sentiu na pele o sofrimento e o desgosto. Pra tornar explícito o que tem dentro do ser-humano.  


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